|  |   Oficina de cinema em saúde mental: relato de uma experiência de estágio
 
 O tratamento da loucura,  desde o final do século XIX, foi confinado aos hospitais psiquiátricos. Se  seguirmos as indicações de Foucault (1978), no clássico História da Loucura,  veremos como que, tradicionalmente, estes hospitais, lugares de exclusão,  reduzem a loucura a parâmetros biológicos e tendem a “coisificar” os pacientes  e a reduzi-los a objetos a serem tratados. Assim, a instituição hospitalar  estabelece regras de funcionamento e vão se organizar para lidar com o  paciente, passivo em seu tratamento, esmagando, sem saber ou sem querer saber,  as subjetividades. Expropriado de sua fala e do sentido de seu sofrimento  psíquico, o louco é considerado em perigo para ele mesmo e para a sociedade  entorno. Fechado em uma instituição, as diferenças tornam-se assim  insuportáveis, até mesmo intoleráveis. O fechamento em si mesmo é redobrado e  constantemente desprovido de sentido. A homogeneização do trabalho da equipe  permite o tratamento de um bom número de pessoas, ao preço da não  responsabilização do sujeito e de uma alienação que opera na contracorrente do  desejo. A continuação dessa história dos hospitais psiquiátricos conhecemos de  cor: maus tratos, passividade, violência e exclusão. É imputado ao louco uma  violência, inerente a seu quadro psíquico, próprio a seu transtorno mental.  Foucault (1978) mostrou como a ideia da agressividade do doente, por exemplo, é  uma construção social, resultado de um exercício de poder que legitima o saber  psiquiátrico. Surge, assim, uma proposta  de acabar com os manicômios transformando o tratamento, excluindo as formas de  castigo e buscando formas de cidadania libertárias. Inicia-se o movimento da  Reforma Psiquiátrica, que no Brasil se dá no final da década de 70, propondo a  abolição progressiva da hospitalização e a construção de uma rede de serviços  de assistência em saúde mental e a criação concomitante de estratégias  territoriais. A reforma psiquiátrica surgiu como conseqüência de um processo de  crítica ao modelo assistencial psiquiátrico tradicional, segregacionista e  excludente. Trata-se de um movimento histórico, de caráter político, social e  econômico. A desinstitucionalização não se restringe à substituição do hospital  por um aparato de cuidados externos envolvendo prioritariamente questões de  caráter técnico-administrativo-assistencial como a aplicação de recursos na  criação de serviços substitutivos. Envolve questões do campo jurídico-político  e sociocultural, para que haja um deslocamento das práticas hospitalocênctricas  para práticas de cuidado realizadas no espaço da cidade. Assim,  estamos vivenciando, desde então, uma série de novas modalidades de assistência  ao louco. Tais modalidades de assistência fazem parte de uma política  diferenciada
 
  de atenção ao louco e tem o intuito de ocupar o lugar  dos velhos métodos de tratamento, centrados no hospital, na encarceração, no  isolamento e na exclusão. Com o intuito de tentar realizar duas operações, a  saber, resguardar a subjetividade do louco e ao mesmo tempo tratá-lo, esses  dispositivos estão sendo colocados em prática no contexto brasileiro, e se  baseiam em uma lógica que se pretende antimanicomial. A ideia é que o louco  possa se tratar na cidade, evitando o corte dos laços sociais e familiares. Sabemos  que mais do que realizar uma reforma estrutural e objetiva na assistência em  saúde mental, é preciso “reformar” a lógica de funcionamento, o pensamento e as  possíveis ideologias que sustentaram, durante décadas, o tratamento excludente  da loucura. Com a  reforma psiquiátrica, vemos surgir esses dispositivos diversos – tais como os Cersam‟s e os Centros de Convivência -, que não se  colocam simplesmente como alternativa à internação, mas que se mostram como a  via régia pelo qual o sujeito pode encontrar uma forma de tratamento inovadora,  que inclua sua subjetividade e o faça participar ativamente de seu processo de  cura. Associada a uma política de reestruturação do sistema vigente, a reforma  colocou à mostra novas práticas, novos fazeres em saúde mental, que tem se  mostrado, em cada situação, eficazes no tratamento, já que priorizam o respeito  ao sujeito, o trabalho interdisciplinar, a busca do estudo de cada caso e a  intervenção social particularizada. Entretanto, como é possível  criar um espaço heterogêneo e heteróclito, que possibilite que cada sujeito se  conecte de forma singular? Como manter um espaço que propicie a sociabilização,  mas que não a imponha? Dentre as propostas de  tratamento na Reforma Psiquiátrica estão às oficinas terapêuticas que ganham  lugar de destaque, sobretudo, na reinserção social: “suas ações devem envolver  o trabalho, a criação de um produto, a geração de renda e a autonomia do  sujeito” (ZANOTTI et al, 2000, p. 279). No início do século XVII o trabalho foi  inserido no campo da psiquiatria como instrumento auxiliar na manutenção da  ordem pública. Aqueles que eram considerados inadaptados às regras sociais eram  abrigados em grandes asilos e o trabalho era tido apenas como ocupação do tempo  ocioso e garantidor da tranquilidade local. Posteriormente, Phillippe Pinel  apontou o trabalho como terapêutico no tratamento da loucura. O uso do trabalho  e da atividade no contexto da psiquiatria passou por três importantes momentos: O  primeiro foi o da trajetória higienista que na década de 1920 os loucos  considerados perturbadores da paz e da ordem pública eram recolhidos pelas  Santas Casas de Misericórdia e por asilos criados para atender a estes mesmos  propósitos. Assim o louco deveria ocupar-se do trabalho para não comprometer a  ordem pública. Na década de 1940, a psiquiatra Nise da 67 
  Silveira inseriu utilização da terapêutica ocupacional  nos protocolos das intervenções na clínica da loucura, denunciando a exploração  de mão-de-obra gratuita em detrimento do objetivo terapêutico. O terceiro  momento trata-se do início da década de 1980 aos dias atuais, período em que se  apresentou pela primeira vez a associação das iniciativas políticas e clínicas  no campo da saúde mental. O avanço no atendimento nestes serviços deu-se pela  nova perspectiva terapêutica que prioriza a ressocialização, a reintegração do  portador de transtorno mental a uma rede comum de significados cotidianos, que  incentiva a ocupação por parte do sujeito nos locais da cidade. Longe de serem uma simples  forma de lazer ou de ocupação, as oficinas em saúde mental têm como norte a  participação ativa do paciente em seu processo de cura. As oficinas são  atividades em grupo propostas por um membro da equipe, onde se cria um espaço  relacional mediado por um objeto concreto. Estas atividades coletivas podem,  por exemplo, favorecer a circulação da fala. Ademais, as oficinas são momentos  para favorecer o encontro do sujeito com o outro. O processo de construção da proposta de oficina em saúde mental   Realizamos a oficina de  cinema no Espaço de Atenção Psicossocial Freud Cidadão, localizado na cidade de  Belo Horizonte. O programa é desenvolvido nos moldes de uma clínica-dia, em que  não há internações, e que busca a organização, juntamente com os pacientes, de  dificuldades importantes em termos de laços sociais. O Programa interessa-se,  portanto, pelos sujeitos em que o laço com o outro está, por algum motivo,  comprometido. A clínica propõe diversas atividades que visam à circulação do  sujeito psicótico e neurótico em todos os ambientes da cidade. Oferece, ainda,  atividades terapêuticas e projetos que objetivam a inserção ou reinserção do sujeito  no convívio social. As atividades realizadas no Programa Freud Cidadão são  embasadas na reforma psiquiátrica, que desarticula a exclusão do sujeito e  investe na possibilidade do convívio social e na execução de tarefas  cotidianas. Orientam-se também pela clínica psicanalítica, de tal modo que as  atividades privilegiam a escuta clínica cuidadosa. Os trabalhos do programa  direcionam-se para o sentido de que o saber do sujeito apontará o caminho de  sua reinserção ao cotidiano da cidade, respeitando os limites de sua rotina e  de suas possibilidades. Como nos explica Guerra, nas oficinas, “seria o sujeito  da loucura que poderia estar sendo tocado, criando novas relações com o  circuito social, restabelecidas pela via do resgate de sua linguagem ou de sua  cidadania” (GUERRA, 2000, p. 
  38).  O uso das oficinas, sobretudo, tem finalidade política na qual o indivíduo tem  maior possibilidade de inserção social, um desenvolvimento de suas habilidades  bem como sua autonomia. Assim o sujeito exercita sua cidadania: “a oficina  permite uma produção subjetiva que pode ter, como efeito, a construção de uma  forma diferente de relação do sujeito com o mundo. É uma atividade coletiva que  remete seus participantes à convivência com o social, pela via da produção”  (BAPTISTA, 2003, p. 124). Um ponto importante sobre as atividades  terapêuticas é que elas devem ter um caráter de oferta, os pacientes devem ser  convidados a participar e não haver obrigatoriedade ou qualquer expectativa  quanto a produção. Tosquelles (apud MICHAUD, 1977) nota como acontece às vezes  da equipe forçar um participante a frequentar uma oficina. De acordo com ele,  esta obrigação não tem sentido, pois o pensionário não está na instituição para  reproduzir as redes de trocas verbais que existem na realidade: a participação  do doente não é uma troca „pela  cura‟ por exemplo. É porque ele quer. É importante manter uma vertente  arbitrária na troca para permitir ao paciente escapar-se dele mesmo, de acordo  com seu próprio ritmo, de acordo com sua dialética, fora da falta onde mergulha  sua incapacidade de se fazer compreender e de se reconhecer (MICHAUD, 1977).  Deve-se construir uma relação de respeito frente à produção subjetiva do louco,  bem como abandonar o pressuposto de uma passividade deste sujeito. A partir  daí, pode-se vislumbrar as reais inovações propostas pela Reforma Psiquiátrica  e a aplicação terapêutica das atividades recreativas. Enfim, podemos dizer que as oficinas terapêuticas  apresentam-se como parte importante dos aportes à ampliação da rede de  convivência do indivíduo, na construção de sua subjetividade, na busca do  sujeito em identificar-se em um objeto - música, poema, roupa - produzido por  ele mesmo. A oficina terapêutica possibilita a interação assegurando o direito  à escolha e zelando pela singularidade psíquica e social do participante. A  oficina de cinema no Freud Cidadão: apontamentos   A proposta da oficina foi a exibição de  filmes de curta-metragem que, posteriormente limitaram-se a filmes de no máximo  vinte e cinco minutos. A oficina aconteceu ininterruptamente às quartas-feiras  durante os meses de setembro, outubro e novembro, iniciando no dia 10 de  setembro e com previsão de término para o dia 26 de novembro. A regularidade  destas atividades no cotidiano da clínica mostrou-se importante. Acreditamos  que ela permite que o sujeito possa, a partir de referentes concretos da  instituição que o acolhe, constituir uma parte de sua história e construir um  espaço dentro do qual ele possa 
  viver  e se deslocar em uma trama subjetiva e singular. No Freud Cidadão, por exemplo,  a lista de todas as oficinas ofertadas é afixada em um espaço da clínica, bem  como os eventos do dia (saídas e passeios, festas e encontros). Assim, todos os  participantes e funcionários podem ter acesso e consultar em qual dia da semana  ou em qual hora acontecerá uma atividade prevista. É assim que essas orientações  e apoios institucionais são inscritos em uma espécie de regularidade temporal,  de tal forma que o desenrolar cotidiano da instituição possa seguir um  funcionamento conhecido e compartilhado por todos. Isso pode permitir ao  participante uma ancoragem mínima ao corpo institucional e social. Na primeira visita que realizamos na  sede do Programa Freud Cidadão, apresentamos aos pacientes a proposta da  Oficina de Cinema em uma reunião geral, na qual todos os participantes estavam  presentes e onde são discutidas as atividades terapêuticas, bem como as demais  rotinas da clínica. Neste encontro, os participantes - como são chamados os  pacientes - , sugeriram alguns temas para a escolha dos filmes ou mesmo alguns  títulos foram indicados. A princípio, alguns participantes sugeriram que  exibíssemos filmes de longa-metragem. Todavia, ponderamos que talvez estas  exibições fossem inviáveis considerando o tempo de duração da Oficina de  Cinema. Neste momento não tínhamos claro como exatamente a oficina aconteceria e  que tipo de intervenção faríamos, se os participantes escolheriam os filmes, se  adotaríamos um roteiro temático e se o seguiríamos até o final. Pois bem, ao  término desta primeira reunião percebemos que não seria possível estabelecer  previamente a maneira como a oficina seria conduzida. Compreendemos que uma das  prerrogativas da Oficina de Cinema seria a construção coletiva com o  envolvimento dos participantes desde a escolha dos temas a serem abordados ao  tema a ser discutido após a exibição de cada filme. A participação na oficina era livre e os  participantes puderam chegar e sair a qualquer momento. A escolha dos filmes  foi feita pelo grupo buscando sempre temas socialmente relevantes, como  desigualdade, discriminação e relações familiares. Em muitos momentos, como,  por exemplo, na exibição do filme de temática gay “Eu não quero voltar  sozinho”, a discussão proposta foi acerca do padrão de normalidade. Pudemos  perceber que apesar da dificuldade em conceituar a normalidade, isso não  ocorria ao identificarem um determinado comportamento como anormal. Dali de  onde nós nos percebíamos os diferentes eram eles. Foi fundamental para o grupo  compreender que cada participante dentro de sua singular subjetividade  estabelece e reconhece padrões. Após essa discussão inicial um dos  participantes coloca a seguinte questão “É estranho para mim porque eu não  conheço”. Posto isso, a discussão caminhou no sentido da possibilidade de que a  “anormalidade”, o “estranho” ou o “diferente” seria aquilo que foge ao  cotidiano ou que cada sujeito não reconhece como parte  de si mesmo. De tal modo que a normalidade faz-se mutável de acordo com as  referências. Contrariando algumas de nossas expectativas iniciais a adesão à  oficina não aconteceu por parte de todos os participantes e o número de  presentes variou bastante. Podemos destacar a interação de um participante que  se manteve assíduo à oficina oferecendo fortes contribuições ao tema proposto.  No decorrer das semanas percebemos que este participante exercia certa  influência sobre os demais. Empenhou-se muitas vezes em auxiliar um e outro  participante a dar sentido (inteligível aos demais) à respectiva fala e  associá-la ao tema em discussão. Considerações  finais A realização da oficina causou também  desconforto em uma frequentadora da clínica. Não tivemos a oportunidade de  apurar os motivos do incômodo, porém a equipe que acompanha tal paciente alegou  certa dificuldade na lida com novos afetos associada a um momento conturbado na  relação familiar. Este fato demonstra a complexidade da oficina terapêutica e  um de seus possíveis desdobramentos. Assim, podemos perceber claramente a  contribuição das oficinas no processo terapêutico dos participantes do Freud  Cidadão, eles têm um momento de lazer que é atrelado à fala que contribui para  interação social. Esse primeiro contato com o campo de estágio foi muito  significativo, uma vez que possibilitou-nos um maior contato com pacientes de  saúde mental e contribuiu para desmistificar algumas concepções que trazemos do  senso comum. Referências  Bibliográficas AZEVEDO, D.; MIRANDA, F.  Oficinas Terapêuticas como Instrumento de Reabilitação Psicossocial: Percepção  de Familiares. IN: Esc Anna Nery, abr - jun; p. 339-345, 2011.  BAPTISTA,  F. Da identificação maciça à emergência do sujeito. IN: Revista Mal-Estar e  Subjetividade. Fortaleza. v. III. n. 1. p. 121 – 129. Mar. 2003.  FOUCAULT,  M. História da Loucura da Idade Clássica. Ed. Perspectiva - SP, 1978.  GUERRA,  A. Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de  uma prática. 2000.  ZANOTTI,  S. V.; OLIVEIRA, A. S.; BASTOS, J. A.; SILVA, W. V. N. de. Jornal do CAPS:  Construção de histórias em Oficinas Terapêuticas. v. 41, n. 2, p. 278-284,  abr/jun. Revista Psico, 2010.  MICHAUD,  G. La Borde, un pari nécessaire. Paris, Gauthier Villars, 1977. Recebido em: 28  de Maio de 2015 Aceito em: 14 de  Setembro de 2015
 Aceito em: 22 de abril de 2015
 
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