ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 12 Setembro à Dezembro de 2010
 
   
 
   
  Artigo  
   
     
 

O funcionamento da linguagem na esquizofrenia: um estudo lacaniano
The mechanism of language in schizophrenia: a Lacanian study

 
     
 

Cláudia Maria Generoso

 
 

Psicóloga clínica e do CERSAM Betim, Mestrado em Psicologia/Estudos Psicanalíticos – UFMG
Especialização em Saúde Mental pela PUC/MG e ESMIG
Doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Endereço para correspondência:
Av. Brasil, 1831, sala 1011, Funcionários / Belo Horizonte – MG
CEP: 30140-901
E-mail: claudia.generoso@yahoo.com.br

 
 

Resumo: Visando caracterizar a especificidade do funcionamento da linguagem na
esquizofrenia, será feito mapeamento e análise de elementos teórico-clínicos encontrados em
textos de Freud e Lacan. O fio condutor dessa investigação se baseará em noções freudianas
de 1915 sobre "a palavra como coisa" e a "linguagem de órgão", bem como a concepção
lacaniana de 1954 sobre "o simbólico como real" e a idéia dos anos 70 sobre a exterioridade
do esquizofrênico em relação ao laço social. Tais elementos serão exemplificados com
vinhetas clínicas e o relato do esquizofrênico Louis Wolfson.

Palavras-chave
: linguagem na esquizofrenia, psicanálise, clínica.

Abstract: In order to characterize what is specific about the way language operates in
schizophrenia, mapping and analysis of theoretical-clinical elements found in Freud and
Lacan´s texts will be carried out. The line of thought in this research will follow Freud´s
notions from 1915 about "the word as a thing" and the "organ language", as well as Lacan´s
conception from 1954 about "the symbolic as real" and the idea from the 1970´s about the
outer world of the schizophrenic in relation to social bonding. Such elements will be
exemplified through clinical vignettes and the report of Louis Wolfson, a schizophrenic.

Keywords
: language in schizophrenia, psychoanalysis, clinic.

 
  INTRODUÇÃO

Lacan sempre acentuou a importância de retomar Freud naquilo que ele demonstra ser
a essência de sua experiência, que é acompanhar a singularidade dos casos que se
apresentavam em sua prática. Ele diz que o "progresso de Freud, sua descoberta, está na
maneira de tomar um caso na sua singularidade" (LACAN, 1994, p. 21). Foi essa essência que
Lacan retirou da experiência freudiana, buscando uma renovação clínica a partir da
singularidade dos casos que sofriam os efeitos concernidos à sua época. Portanto, na
psicanálise, a motivação clínica é fundamental para alimentar uma investigação teórica.

É dentro desse espírito que a importância de trabalhar a psicose, em especial a vertente
esquizofrênica, parte de minha experiência clínica, cuja prática se desenvolve em variadas
situações: consultório, Centro de Referência em Saúde Mental, moradia protegida, supervisão
de acompanhamento terapêutico. A grande maioria dos casos que utilizam variados
dispositivos institucionais de tratamento e outros recursos da saúde mental é composta por
pacientes esquizofrênicos. O campo da saúde mental abriga diversos saberes e o risco de esses pacientes serem tomados numa posição de objeto de cuidados, pesquisas e ações engessadas em algum ideal é grande, o que poderá reforçar a sua própria posição estrutural de objeto. A grande fragilidade subjetiva desses pacientes, marcada pela fragmentação da fala e do corpo, falta de interesse pelo mundo, passividade etc. permite ações variadas sobre eles: ações de reabilitação psicossocial, pesquisas de medicamentos de última geração, intervenções
cognitivo-comportamentais, atendimentos tradicionais em psicanálise etc. Porém, os efeitos
de grande parte dessas ações muitas vezes não atingem o sujeito ou acabam por reforçar a
posição objetal do paciente, permanecendo o isolamento social, a passividade diante do outro,
a fragmentação, as esquisitices ou bizarrices, culminando nos casos nomeados de refratários
ao tratamento, à medicação, ao convívio social. As intervenções não conseguem atingir o
paciente em sua subjetividade, capturá-los para construir soluções que consigam implicá-los.
Pelo contrário, ao permanecerem sem interesse pelo mundo externo, esses pacientes acabam
sendo rotulados de crônicos ou residuais, rótulos que são um atestado para aqueles casos que
não têm mais jeito.

Pelo fato de meu trabalho com esses pacientes envolver situações diversas e
inesperadas, trabalho esse que ocorre dentro do cotidiano de uma casa, na rua, na urgência
etc., essas situações podem facilmente gerar intervenções puramente pedagógicas e
disciplinares, forçando uma inserção de adaptação social. Diante desse risco, uma
investigação psicanalítica lacaniana sobre a esquizofrenia poderá contribuir na orientação das intervenções. Buscar entender a lógica do funcionamento da linguagem na esquizofrenia
possibilita-nos perceber melhor esse modo subjetivo, bem como apostar na construção de
soluções que cada um indica. Nesse sentido, a clínica nos tem ensinado que uma das vias que
esses pacientes nos mostram para a construção de soluções é aquela que se desenvolve no
"fazer junto", na ação prática mais ligada ao cotidiano, aos pequenos detalhes da vida,
possibilitando uma historicização dos acontecimentos ou incentivando o desempenho de
algum papel social possível, bem como a eleição ou construção de algum objeto etc. Como
exemplo, cito o caso de um paciente que encontrou o recurso de carregar consigo algum
objeto dentro do bolso, tendo o "ritual" de tirá-lo do bolso, mostrar a alguém e guardálo
novamente junto ao seu corpo (cabo de colher, canetas, ímãs etc.). Ele dizia que quando
guardava algum objeto no bolso, a sua perna parava de doer. Eram objetos descartáveis que
ele recolhia do ambiente, usava e jogava fora após encontrar outro. Esse arranjo indica uma
forma de tentar concentrar o insuportável do gozo que recai sobre o seu corpo nos objetos
destacáveis desse corpo, apontando uma tentativa de separação e delimitação dele.

Esse texto, oriundo de minha dissertação de mestrado, busca circunscrever elementos
teórico-clínicos que envolvem a relação da linguagem na esquizofrenia, uma vez que entender
o funcionamento da linguagem nessa forma clínica possibilita-nos perceber melhor a relação
estabelecida com o laço social nesses casos. Referimo-nos aqui à noção de laço social dentro
da concepção lacaniana de discurso, tal como desenvolvido nos seminários de Lacan do
período 1968-1972. Porém, antes de desenvolver e aprofundar a questão do laço social na
psicose foi necessário investigar a especificidade da linguagem na esquizofrenia, pois ela
demonstra com mais evidência o que é estar fora do laço social, tornando-se uma espécie de
"paradigma" do fora-do-discurso. Portanto, o funcionamento da linguagem na esquizofrenia
demonstra especificidades que apontam para outra forma de relação com a linguagem.

Se por um lado podemos colocar a esquizofrenia no centro dos exemplos do que vem a
ser o fora do laço social numa perspectiva psicanalítica, por outro lado, observamos que ela
não teve um lugar central nos textos de Freud e Lacan, não havendo uma teoria estabelecida
sobre esse tipo clínico como há sobre a paranóia. Portanto, nos textos desses autores que
mencionam a esquizofrenia podemos circunscrever elementos teóricos que indicam um
caminho que esboça uma possível teoria da esquizofrenia.

PERCURSO HISTÓRICO DA ESQUIZOFRENIA

Privilegiar uma investigação sobre a esquizofrenia é tentar chamá-la ao cenário da
psicanálise, lacaniana e freudiana, a um lugar de frente e não somente àquele lugar mais
periférico, tal como podemos perceber nos textos de Freud e de Lacan que a mencionam.

Parece-nos que a preocupação desses autores estava em formular instrumentos conceituais
diferenciados, próprios à psicanálise, para entender a psicose. Uma vez que a esquizofrenia
estava mais atrelada à concepção de demenciação e déficit, talvez isso dificultasse ainda mais
as elaborações psicanalíticas calcadas na incidência da linguagem e sua relação com o
inconsciente na constituição subjetiva. Nesse sentido, a paranóia foi eleita para trabalhar esses
instrumentos, tal como podemos perceber que Lacan a ampliou para dar-lhe o estatuto da
estrutura mesma da psicose. O termo esquizofrenia sempre foi problemático para Freud e
Lacan, porém eles deixaram esta discussão de lado, apesar de utilizarem os fenômenos da
esquizofrenia para demonstrar outros conceitos que estavam elaborando.
Considerando essa dificuldade em relação ao termo, bem como o que ele carrega de
problemático, iniciamos nossa investigação fazendo um percurso histórico que situa autores
importantes na formação dessa entidade clínica. Começamos por Kraepelin que, em 1899,
utilizou o nome de demência precoce para essa entidade nosológica. Ele propôs tal
denominação numa tentativa de deslocar a referida entidade dos quadros demenciais de
origem somática comprovada. Porém, a idéia de que esses casos eram considerados como de
evolução demencial, degenerativa e incuráveis permaneceu no pensamento kraepeliano,
reforçando uma provável origem orgânica.

Em seguida, recorremos ao psiquiatra suíço, da corrente psicodinâmica da escola de
Zurique, Eugen Bleuler que, em 1911, em seu famoso livro "Demência precoce: o grupo das
esquizofrenias" lançou o termo esquizofrenia em substituição à denominada demência
precoce. Esse autor demarcou um importante cruzamento do campo da psiquiatria clássica
com o campo da psicanálise, em que a influência das idéias de Freud ficam evidentes quando
incidem sobre as noções psicopatológicas de afeto e associação. Bleuler, juntamente com
Jung, tomou de Freud as noções de libido e de inconsciente, dando importância ao papel da
afetividade no funcionamento psíquico. Dessa forma, introduziu a noção de complexo afetivo
como fator regulador do modo de funcionamento do pensamento e das ações do sujeito, que,
até então, estava atrelado à idéia clássica da associação sobre o funcionamento do
pensamento. Para Bleuler, a esquizofrenia referia-se principalmente à dissociação das funções
psíquicas, cujos sintomas fundamentais compreendiam a perturbação das associações do
pensamento e da afetividade. Apesar de ser contrário à idéia de Kraepelin sobre a evoluçãodesses casos para a demenciação e incurabilidade, Bleuler não descartou a possibilidade de uma causalidade orgânica.

O termo esquizofrenia ganhou maior aceitabilidade e circulação no meio psiquiátrico,
e a idéia de dissociação ligada à perda da unidade das funções psíquicas prevaleceu como uma
das principais características dessa entidade clínica. Percebemos também a prevalência da
idéia de dissociação, relacionada a uma falha na função de síntese do eu, no meio
psicanalítico pós-freudiano, bem como na psicologia do Eu, cujo tema da esquizofrenia
ganhou grande destaque, ao contrário de Freud e Lacan que privilegiaram a paranóia. A
característica da dissociação vinculada à concepção de uma falha na função de síntese do eu
estava presente também nas discussões iniciais de Lacan com seus alunos, contidas no
"Seminário, Livro 1" (1953-1954). Porém, Lacan buscava demarcar uma diferença com
relação à concepção da psicologia do Eu. Por este motivo, este artigo privilegiou em grande
parte os textos do Seminário 1, pois foi nesse contexto teórico que surgiram indicações
importantes sobre a esquizofrenia, tal como a expressão de que "para o esquizofrênico todo o
simbólico é real" (LACAN, 1954/1998, p. 394), bem como elaborações sobre o imaginário e
a constituição do eu, cujos temas são necessários para esclarecer melhor os fenômenos
esquizofrênicos.

Diante do contexto teórico acima mencionado, é que foi necessário fazer uma
demarcação de campos teóricos, visando a estabelecer o que concernia ao campo freudiano e
lacaniano em relação à esquizofrenia, diferenciando-o de outros contextos. Nessa perspectiva,
recorremos ao discípulo de Freud, Paul Federn, teórico da psicologia do Eu, que desenvolveu
muitas pesquisas sobre a esquizofrenia. Esse autor referia-se aos fenômenos da esquizofrenia,
dentre eles a dissociação, como uma precariedade da unidade das funções do eu nesse tipo
clínico que, neste caso, era reconhecida enquanto déficit (FEDERN, 1953/1979). Se, para
Federn, na esquizofrenia a tônica era colocada em termos de cisão das funções do eu a partir
da perda da unidade das fronteiras do eu, para Freud e Lacan a cisão estava colocada como
constitutiva do psiquismo. Cisão no sentido da clivagem originária que constitui o psiquismo
em consciente e inconsciente. Nesse sentido, o reconhecimento do inconsciente na teoria
freudiana e lacaniana é fundamental, ao contrário de Federn que dava grande importância ao
eu enquanto uma unidade de investimento afetivo, coerente e contínuo, em detrimento do
inconsciente.

Essa discussão foi importante, pois Lacan buscou deslocar a supremacia do eu, no
sentido de uma unidade coerente que ganha maturidade pelo grau de organização, sendo o
principal orientador da vida psíquica, para elaborar uma concepção do eu como uma função
imaginária. Ele desvincula a idéia de coerência e harmonia do eu, para indicar que há também
uma desarmonia no eu, um desconhecimento, tal como na constituição do eu a partir do
estádio do espelho, do narcisismo, que leva a uma alienação no (O)utro, pois é a partir da
relação com o (O)utro que o eu se constitui. Nesse momento do "Seminário 1", Lacan dá
grande ênfase à função do imaginário no sentido de considerar os fenômenos patológicos
como uma exacerbação ou um esfacelamento desse registro. Tal como é o caso da paranóia,
em que há uma grande consistência desse registro, prevalecendo apenas a alienação do eu,
culminando numa exacerbação do sentido. Ao contrário da esquizofrenia, em que há uma
dissolução do imaginário e, por conseguinte, do eu e do corpo. Nesse momento teórico, a
libido também é tomada em termos imaginários, como uma pregnância do imaginário, tal
como ele nomeia de "libido imaginária", causadora das perturbações psíquicas. Apesar de
desenvolver mais detidamente sua concepção do imaginário, o que de fato estava em foco era
a importância do simbólico na estruturação do imaginário, o qual deveria ser regulado pelo
simbólico.

ESPECIFICIDADE DA LINGUAGEM NA ESQUIZOFRENIA

Após um percurso histórico do termo, bem como a intenção de demarcar e
circunscrever diferentes campos teóricos em relação à esquizofrenia, buscamos desenvolver
neste item elementos teórico-clínicos sobre algumas especificidades do funcionamento da
linguagem na esquizofrenia. Mesmo que a apreensão da esquizofrenia em Freud e Lacan se
fizesse por elaborações mais periféricas, esses autores deixaram indicações importantes para
pensar o modo como opera a linguagem nesses casos. No percurso feito, o qual abrangeu, em
grande parte, os textos de Freud entre 1911-1917 e, em Lacan, os textos do momento
estruturalista de 1954, 1955 e 1958, e ainda um pouco do contexto pós-estruturalista, de 1972- 1973, pudemos começar a delimitar o modo de funcionamento da linguagem na esquizofrenia a partir de temas indicados sobre: "a palavra como coisa" (FREUD,1915/1976), "a linguagem de órgão" (FREUD,1915/1976), "o simbólico como real" (LACAN,1954/1998), "a
exterioridade em relação ao laço social como discurso" (LACAN,1972/2003).

Em Freud, as elaborações sobre os fenômenos esquizofrênicos estão permeadas pela
teoria da libido, bem como por sua investigação em relação ao inconsciente, destacando-se o
funcionamento da linguagem via modo de satisfação pulsional auto-erótico, observado na
linguagem de órgão ou nos fenômenos hipocondríacos. Destaca-se, também, a exterioridade
dos mecanismos do inconsciente que se apresentam de forma desvelada, tal como os
fenômenos esquizofrênicos que surgem sob a forma da palavra como coisa: manifestação de
expressões neológicas, a salada ou copulação das palavras, a concretude da fala que traz um
enunciado sem a articulação dos representantes psíquicos com o funcionamento inconsciente,
pois não houve o recalque. Como conseqüência disso, há uma prevalência do funcionamento
da representação de palavra que não se vincula à representação de coisa como recalcada, não
operando o mecanismo da substituição. E, nesse caso, a palavra é tomada como coisa.

Para exemplificar esse funcionamento, trago um fragmento clínico de um paciente que
tem o apelido de "boi". Um dia ele foi ao zoológico, e ao visitar a área de exposição das
cobras, escutou alguém ao seu lado comentar que uma jibóia engolia um boi e, neste
momento, ele saiu correndo para não ser engolido pela cobra. Nesse caso, a palavra não
substitui, pois ele é concretamente a palavra "boi". Dessa forma, a linguagem fica mais à
deriva, mais vulnerável à decomposição ou ao congelamento, pois aquilo que poderia
sustentar ou ancorar uma significação e um sentido, não funciona. Verificamos nos textos
metapsicológicos freudianos que é a fixação do representanterepresentação (representante da
pulsão que constitui o núcleo do Inconsciente, e o recalque) que cria um ponto de articulação
e dá suporte à representação, conferindo-lhe um caráter de realidade, cuja relação entre
representação de palavra e representação de coisa serve para designar ou denotar.

Em Lacan, verificamos nos textos estudados do momento estruturalista, que as
elaborações concernentes à esquizofrenia privilegiaram a alteração na função do imaginário,
no sentido de não ser consistente, que não foi regulado pelo simbólico. Fazendo uma distinção
com a paranóia, cujo simbólico também não é operante, mas há um eu muito consistente, na
esquizofrenia não há a sustentação do eu, pois não houve a fixação de uma imagem
unificadora, permanecendo aquém da alienação imaginária do eu. Nesse caso, a imagem não
fisga o corpo, não cumprindo sua função de estruturação do corpo ao fixar um contorno
totalizante. Trata-se da fragmentação do imaginário e, por conseguinte, partes disjuntas do
corpo que funcionam sozinhas, não coordenadas pelo simbólico.

No contexto teórico de 1954, em que aparece a expressão "o simbólico é real"
(LACAN, 1954/1998, p. 394), Lacan dá grande ênfase ao registro do imaginário, associando a
ele a libido, e, por conseguinte, as perturbações psíquicas, no sentido das "flutuações
libidinais" (LACAN, 1954/1986, p. 210). Nessa perspectiva, a expressão acima remete-nos a
uma falência do imaginário que não foi regulado pelo simbólico. Sendo assim, prevalece o
funcionamento da linguagem que não foi envolvida pelo imaginário, pois não há o
investimento da "libido imaginária" – conforme nomeia Lacan nesse momento (LACAN,
1954/1986, p.166). Essa libido é que permitiria uma certa consistência da linguagem na
vertente imaginária. Diante dessa inconsistência imaginária, isso nos sugere uma relação
direta da linguagem com o real que não foi separado pelo simbólico, no sentido de poder
representá-lo simbolicamente. Talvez possamos dizer que é nesse nível que se apresenta a
dimensão da linguagem não articulada ao apelo, manifestando-se a fala sem a intenção, sem
entonação, sendo isso o que faz se prender ou querer algo, pois não há o investimento da
libido imaginária. Se não há captura imaginária, podemos dizer que não houve a alienação
imaginária, a qual é uma característica dos paranóicos que ficam detidos somente nessa
alienação.

Essa dimensão da linguagem, que não foi investida libidinalmente, é verificada em
muitas falas de esquizofrênicos, tal como a desagregação ou descarrilamento do pensamento,
as pára-respostas, as expressões sem nexo ou dissociadas, a falta de interesse pelo mundo, as expressões neológicas, as quais não remetem a nada, a nenhuma significação (mesmo que
delirante). Podemos dizer que essa dimensão da linguagem é o que levou Bleuler a tratá-la em termos de dissociação do pensamento, cuja consciência não conseguiu cumprir sua função de ligação e orientação das associações dirigidas a uma meta principal. Ou Federn, que
considerou como uma "desadaptação do Eu" em sua dimensão de unidade de investimento,
incapaz de comandar os processos psíquicos. Podemos dizer que Freud e Lacan (FREUD,
BREUER, 1893-1895/1987 e LACAN,1960/1998) avançam nesse ponto, quando consideram
a importância da cisão do psiquismo como constituinte para qualquer sujeito, não sendo
específico da esquizofrenia. Bem como quando eles fazem essa discussão vinculando-a a uma
forma de funcionamento diferente do inconsciente, dando ênfase ao inconsciente na
articulação da linguagem.

Já nos textos de Lacan, a partir dos anos 70, a linguagem ganha outro estatuto, pois o
simbólico já não tem o lugar de primazia, havendo uma íntima relação entre significante e
gozo. Nesse momento, o gozo, que é o correlato da satisfação libidinal freudiana, já não está
numa estreita relação com o imaginário, mas sim com o significante e o real. É dentro desse
contexto teórico que a indicação da esquizofrenia, no artigo. "O aturdito" (1972), assinala
uma posição da mesma como exterior ao laço social a partir da noção de discurso: "...o dito
esquizofrênico ao ser apanhado sem a ajuda de nenhum discurso estabelecido." (LACAN,
1972/2003, p. 475). O discurso vem cumprir uma função de articulação e arranjo entre a
linguagem e o que resta fora dela, encarnado pelo objeto mais-de-gozar, índice do real. Essa
função de arranjo, possibilitada pelo discurso, permite lidar melhor com o corpo, criando
lugares e funções simbólicas estáveis para os órgãos que compõem uma estrutura de
funcionamento unificado e não questionável constantemente. Nessa defesa do real pelo
simbólico (MILLER, 1996), a relação do ser falante com a linguagem é de habitá-la e de fazer
dela seu instrumento, conforme indica Lacan no artigo "O aturdito".

Devido ao fato de o esquizofrênico ser remetido ao fora do discurso, manifesto na
conexão imediata entre o significante e o gozo, bem como sofrer dos efeitos da linguagem que
o habita, invadindo-o, cuja posição é de instrumento, ele precisa inventar funções para o seu
corpo despedaçado. Nesse caso, os órgãos não têm uma função estável, se manifestando à
revelia do sujeito, e falam por si só, causando as vivências de alteração ou modificação
corporal que se apresentam sob a forma de linguagem de órgão, valendo-nos aqui da
nomeação de Victor Tausk (1919/1990), discípulo de Freud. Outro reflexo desse problema do
funcionamento da linguagem, sem o amparo do discurso, apresenta-se na ironia infernal do
esquizofrênico que se atualiza na ausência do sujeito do laço social como discurso. Isso nos
coloca a questão de como poderemos operar, na clínica, a partir do fora-do-discurso. Dizendo
de outra forma, como pensar intervenções clínicas que considerem o laço social além da
noção de discurso.

A ironia e a linguagem de órgão, as quais podemos associar a um modo de
decomposição da linguagem, bem como à satisfação pulsional ou ao gozo deslocalizado que
invade o corpo, fragmentando-o, podem ser ilustradas pelo relato de Louis Wolfson, contido
em seu livro "Le schizo et les langues" (WOLFSON, 1970). Trata-se de um americano
nascido em Nova York, e como ele mesmo se nomeia: "o estudante de línguas
esquizofrênico", que não suportava ouvir a língua materna – o inglês. Ele nos mostra como
sofre dos efeitos da linguagem que o decompõem, agindo diretamente em seu corpo, pois não
serve para ampará-lo, uma vez que ele não habita a linguagem que se apresenta numa outra
vertente, tal como veremos a seguir.

Wolfson diz que, desde criança, ele já tinha dificuldade para falar, ler e ouvir a língua
materna. Essa dificuldade foi associada pelos professores dele a uma incapacidade intelectual
de Wolfson, sendo ele transferido para uma classe de alunos com "retardo mental". Ele
mesmo diz que foi uma luta para aprender a língua, conseguindo falá-la em uma idade já
avançada. Isso aconteceu também em relação à leitura convencional, "travando nova batalha".
Era difícil, para ele, manter a atenção, a concentração e o interesse sobre as lições de leitura,
uma vez que as achava difíceis de compreender, bem como desinteressantes e sem
importância. Essa dificuldade foi acompanhada por tiques nervosos e maus hábitos, os quais
ele diz ter desenvolvido desde criança. Sobre essa dificuldade, ele comenta: "Em uma palavra,
ele não tinha gostado de ler e sem dúvida porque ele quase não o podia"1 (WOLFSON, 1970
p. 34).

Apesar da dificuldade em aprender a língua no ensino primário, a partir de seus 20
anos de idade ele passou a se interessar de forma "fanática e fantástica" pelo estudo de
algumas línguas estrangeiras, apresentando grande ansiedade em dominá-las. Elas eram
principalmente o francês, o alemão, o hebraico e o russo. Wolfson diz que concluiu o ensino
médio e cursou, por quatro anos, a universidade, sendo, nesses estudos, os momentos
importantes de contatos com línguas estrangeiras. Isso vem demonstrar que sua dificuldade
não se referia a um déficit intelectivo, mas sim à estrutura psicótica que apresentava outra
ordem de perturbação concernente à linguagem.

A língua materna era tão insuportável de ouvir, que, constantemente, ele tapava os
ouvidos com os dedos para abafar o som. Outro mecanismo que desenvolveu posteriormente
foi andar com um estetoscópio no ouvido, unindo a parte inferior desse instrumento a um
gravador portátil, para ouvir músicas em línguas estrangeiras. Sobre isso, diz que ele foi o
precursor do walkman. Para ele, o difícil era o som da língua, principalmente de alguns
fonemas, pois o mesmo entrava em seu ouvido e lhe causava dor no corpo, retumbava em seu
tímpano: "o espírito era possuído pelas palavras, dominando-o e causando-lhe ataques"
(WOLFSON, 1970, p. 117-118). Quanto a esses ataques, ele se refere aos momentos em que
era "tocado de estupor" pela invasão de palavras ouvidas ou lidas que dominavam seu espírito
por um ou vários minutos. Esse estado era mais intensificado quando as palavras eram ditas
pela mãe e entravam em seu ouvido, pois a relação com a mãe era muito persecutória e
ambivalente. Ele dizia que a mãe queria perturbá-lo, não perdendo a oportunidade de falar-lhe
inesperadamente em inglês, demonstrando com isso um prazer macabro nessa boa
oportunidade de injetar de alguma forma as palavras que saiam da sua boca nas orelhas de seu filho, seu único filho - ou como ela lhe tinha dito varias vezes: sua única posse -, parecendo tão feliz por fazer vibrar o tímpano dessa única posse, e em conseqüência disso, os ossículos do ouvido médio da dita posse, seu filho, em uníssono quase exato com suas cordas vocais...
2(WOLFSOSN, 1970, p. 183).

¹ Tradução livre de: "En un mot il n'avait pás aimé lire et sans doute parce qu'il n'avait guère
pu" (WOLFSON, 1970 p. 34).
² Tradução livre de: "[...] espèce d'une joie macabre par cette bonne opportunité d'injecter en quelque sorte les mots qui sortaient de sa bouche dans les oreilles de son fils, son seul enfant – ou, comme elle lui avait de temps
en temps dit, son unique possession -, en semblant si heureuse de faire vibrer le tympan de cette unique possession et par conséquent les osselets de l'oreille moyenne de ladite possession, son fils, en unisson presque exacte avec ses cordes vocales, à elle, et en dépit qu'il en eût" (WOLFSON, 1970, p. 183).

Portanto, não era o sentido que o incomodava, mas o som, o ruído da língua cravado
no corpo, apresentado principalmente na pronúncia da sua mãe. Isso vem demonstrar como
não há uma separação desse Outro materno, cujas palavras lhe invadem, de forma imperativa
e caprichosa, sendo a voz da mãe uma extensão do tímpano dele. Observamos, aqui, que não
houve o estabelecimento de bordas do corpo, uma hiância que separaria seu corpo da fala da
mãe, criando lugares para a linguagem exterior ao corpo.

Diante dessa invasão, Wolfson nos demonstra suas tentativas de construir um
procedimento para decompor a língua, tentando tratar a linguagem e construir um corpo,
fazendo arranjos cotidianos de conversão lingüística para lidar com a língua materna
destrutiva. É justamente no momento de junção da palavra-ruído que Wolfson lança mão do
seu procedimento. Tal como indica Foucault, diante da intrusão das palavras que surgem
coladas com a hostilidade do alimento da língua materna, concernindo a uma linguagem
privada de distância, a qual permitiria designar, Wolfson responde com seu procedimento.

Esse inclui tapar os orifícios (boca, ouvido, olhos) abertos ao mal que vem da palavra
materna, transformando essas palavras-coisas em línguas estrangeiras que o apaziguam.
Trata-se de uma tentativa de criar um mínimo de interiorização e exteriorizar uma língua que
tomou lugar diretamente em partes de seu corpo: ouvido, boca, olhos, ânus (FOUCAULT,
1970/2001).

Diante dessa tragédia em relação à língua, é que Wolfson desenvolve um
procedimento com determinadas regras para traduzir o inglês que ouvia em outras línguas.
Conforme indica Deleuze (1997), o procedimento compreende o seguinte: diante de uma
palavra da língua materna (o inglês), ele precisa encontrar uma palavra de outra língua que
tenha o sentido similar e também que tenha algumas letras, sons ou fonemas comuns.
Trata-se de uma operação de conversão em línguas estrangeiras abrangendo o movimento fonético e o sentido, extraindo de cada conversão regras fonéticas que serão aplicáveis a outras conversões posteriores. Essa conversão teria que acontecer de forma muito rápida, quase simultaneamente à palavra ou frase ouvida ou lida em inglês. Essa operação centrava-se na decomposição dos sons das palavras, compondo outras palavras estrangeiras existentes no código, mas sempre utilizando algumas letras ou sílabas do original. Esse processo remete-nos a um detalhado trabalho artesanal de montagem de palavras, como se da língua natal surgisse, ou engendrasse, outra língua estrangeira.

Geneviève Morel (1986) indica que o fundamento desse procedimento está na mentira
contada pelo pai de Wolfson, quando ele era criança, enganando-o ao lhe dizer que a palavra
para árvore em russo era a mesma do inglês (tree). A esse engano, ela associa a referência de
Lacan, contida no "Seminário 3", sobre a noção de significante em sua existência radical, uma
vez que "todo verdadeiro significante é, enquanto tal, um significante que não significa nada",
estando aí a distinção em relação à significação (LACAN, 1955-1956/1988, p. 212). A esse
respeito, Lacan prossegue dizendo que se trata da dimensão do significante no real que serve,
não para a informação ou a significação, mas para iludir e enganar, pois não exprime
nenhuma relação direta com a ordem da necessidade. Na psicose, há um impasse na relação
do sujeito com o significante, pois há uma perplexidade em relação ao mesmo. Nesse ponto
Lacan diz que o problema é que o Outro enquanto detentor do significante está excluído,
ocorrendo aí os fenômenos de linguagem, tais como as frases interrompidas, "já que há um
uso por assim dizer implicante do significante". Ou seja, diante da impossibilidade de
formular verdadeiramente um enigma que possa amarrar as significações, o que surge é o
significante como tal, em estado puro e que não significa nada, mas que só engana. Seguindo
essa lógica do significante como tal, ou assemântico, é que Morel associa às decomposições
lingüísticas realizadas por Wolfson, constatando que é uma constante atualização desse
engano que o leva a transformar sua língua materna, cuja vertente é o significante enquanto
tal, utilizado para enganar, de certa forma, o Outro materno.

A manutenção de algumas letras da palavra original em inglês, em suas conversões,
era uma maneira de separar algo de material que se apresentava sob a forma ortográfica ou da letra, daquela da significância vinda da mãe, da língua materna, possibilitando, com isso,
isolar alguma materialidade que pudesse dar suporte para as conversões que incluíam a
modificação do som e a manutenção do sentido. Podemos dizer que ele tenta enganar a língua
materna, ou a voz da mãe, escamoteando sua pronúncia. Por exemplo, Wolfson modifica a
palavra inglesa tree (árvore), decompondoa, pois o som do t pronunciado nesta palavra o
machuca. Ele trabalha com o t e o r para transformá-la em tere, convertendo-a foneticamente
em dere, a qual faz surgir a palavra russa derevo (árvore). Faz essa conversão porque o som
do t associado ao ree, formando a pronúncia [tri:] (conforme o alfabeto internacional de
fonética), o irrita e invade seu espírito, impulsionando-o a se livrar desse som. Wolfson fazia
longas pesquisas nos dicionários de línguas, sempre recorrendo ao alfabeto internacional de
fonética para fazer suas conversões lingüísticas, buscando se apoiar e se servir do código de
um contexto mais universal em seu combate às mensagens que se interrompiam ao esbarrar na "palavra como gozo": aquela que destrói a associação da cadeia significante e, por
conseguinte, a unidade corporal se desfaz.

Podemos dizer que Wolfson é um caso exemplar do modo de funcionamento da
linguagem na esquizofrenia, bem como a tentativa reiterada de inventar recursos para
encontrar uma possível solução de separação do Outro materno.

Os elementos teórico-clínicos referentes à ironia e à linguagem de órgão levaram-nos a
inferir que se trata da linguagem em sua vertente da "palavra como gozo" (MILLER, 1999, p.
101). Ou seja, do simbólico como real, mais na dimensão de "lalíngua" (LACAN, 1972-
1973/1985), havendo prevalência do significante como real que se manifesta pela via do não
sentido, interrompendo, assim, a seqüência semântica da cadeia significante. Se na paranóia
associamos o modo de funcionamento da linguagem a uma imaginarização do simbólico, ou
ao significante como imaginário, em busca de um sentido sem falhas, na esquizofrenia
podemos dizer que o significante é real. Isto quer dizer que a tônica está no ruído da palavra,
na vertente de lalíngua, cuja finalidade é estar do lado do gozo na apreensão das palavras, e
não numa função comunicativa e de sentido. É essa vertente da palavra como gozo que invade
o corpo de Wolfson, tal como vimos acima. Assim, fica mais evidente que, na esquizofrenia, é
a constituição de um corpo que está em questão e, por conseguinte, a consistência do
imaginário. Essa é uma via importante a ser considerada na condução de uma prática clínica
com esquizofrênicos, pois nos coloca várias questões, dentre elas, como operar com a ironia
infernal do esquizofrênico que tanto decompõe como é decomposto pela linguagem, sem se
fixar a algum significante que possa servir como uma certa ancoragem?

O contexto teórico do final do ensino de Lacan nos permite pensar que, se inicialmente
ele privilegiou a paranóia como paradigma da psicose, mais no final de sua obra percebemos
que ele recorre, de certa forma, à esquizofrenia para demonstrar uma outra concepção de
linguagem, pensada a partir da dimensão do real. Nesse sentido, a esquizofrenia testemunha
essa relação com o real da linguagem, pois desvela e denuncia a natureza de semblante da
linguagem quando ela é recoberta pelo discurso. Como indica Miller (1996), se considerarmos
a vertente do real da linguagem, cujo simbólico se torna real, a esquizofrenia pode ser
considerada como a medida da psicose.

CONCLUSÃO

Esta pesquisa nos levou a entender um certo funcionamento da linguagem na
esquizofrenia, o que nos possibilita intervir em nossa prática de um lugar um pouco mais
preciso. Se tomamos a premissa de que são os pacientes que nos mostram por onde deve ir a
construção de algum arranjo, ou alguma solução para eles, a partir daí percebemos que,
muitas vezes, a solução não se embasa tanto na construção de um sentido. Entretanto,
podemos apostar com eles nas pequenas construções que ocorrem fora de qualquer sentido,
mas que apaziguam e têm mais efeitos terapêuticos. Tal como uma paciente que, diante da
decomposição de seu eu, bem como do seu desdobramento em várias pessoas que invadem
seu corpo, comandando o seu agir, ela encontrou um pouco de tranqüilidade no ato de
escrever suas decisões e indignações no caderno de recados da moradia protegida onde vive.
Quando essa invasão intensifica-se mais, ela recorre ao caderno. Talvez isso seja uma
tentativa de dar um mínimo de materialidade que possa fixar algo diante de uma linguagem
que se pulveriza facilmente, incidindo no corpo de forma a decompô-lo.
Enfim, perceber o modo de funcionamento da linguagem e o que poderá surgir como
construção de pequenos arranjos a serem incentivados é o que importa na tentativa de uma
investigação sobre a esquizofrenia.


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Recebido em Abril de 2011
Aceito em Maio de 2011
 
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Revista N° 12.
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